Reflexo na Janela





Preciso encarar todas as noites, de segunda a sexta, uma viagem de ônibus durante uma hora até a universidade. Essas viagens já não são tão cansativas, algumas pessoas costumam se distrair com os joguinhos de celular, mas eu prefiro deixar meu celular bem guardado na mochila, já que as noites em São Paulo não são tão seguras assim e após descer do ônibus, ainda encaro uma caminhada.

De toda forma, eu acabei me acostumando com essa rotina e um livro sempre me distrai, mas... Ontem, outra coisa me distraiu.

Um cara todo sorridente girou a catraca, cumprimentando motorista e cobrador, agradecendo e dizendo que todas as noites precisaria desse ônibus para voltar para casa. Ele não era um gato fora do comum como as meninas na universidade costumam reparar, mas esbanjava uma energia alegre e comunicativa. Fisicamente não parecia extremamente alto, tinha pele clara, cabelos negros e barba por fazer. Vestia camisa e calça social o que lhe dava um ar de sujeito responsável (eu e minha tara por homens de roupa social).

Havia muitos lugares vagos no ônibus, mas acho que ele percebeu minha expressão exclamativa, recuou um passo no corredor e sentou ao meu lado dizendo: "licença". 

Fiquei estática no meu lugar, fechei o livro e o mantive no colo em cima da minha mochila. As vezes eu o via pelo reflexo na janela, ele parecia estampar um sorriso discreto que morava em seu rosto o tempo inteiro. Uma expressão leve e feliz. Durante o percurso do ônibus, passei a me perguntar se o rapaz era sempre assim: leve.

Ele parecia perfeito, mas já diz minha mãe que ninguém nesse mundo é perfeito. Então passei a imaginar alguns defeitos para ele. Talvez tivesse seus dias de mau humor... Afinal, todos temos. Quem sabe ele fosse um grosseirão machista? Nada pior que um cara machista! Mas com a expressão no reflexo da janela é quase impossível sustentar essa ideia...

Então, ele pode ter mau hálito! Vou sustentar esse argumento fútil só para não arrumar outro amor platônico para a minha vida. Fiquei satisfeita com a minha indagação mental. No entanto, o rapaz pareceu ouvir meus pensamentos, começou a fuçar o interior da sua mochila e tirou dali um pacote com balas colocando uma delas na boca. Eu corei.

Recostei no banco, não sei se ele percebia a minha inquietação. Fechei os olhos por um momento, só para apagar aquele bendito reflexo na janela. Eis que ele parece apelar para a minha audição...

Ouvi um sonoro ruído ao meu lado. Ele estava murmurando uma música? Abri os olhos imediatamente e, por puro instinto, o encarei. Assim fiz a descoberta de que ele tinha olhos verdes, vi seu sorriso tranquilo esticar-se no rosto, só não entendi se aquela expressão era vergonha por ser flagrado cantando ou se era satisfação por eu reagir exatamente como ele esperava.

Esse encontro de olhares durou dois ou três segundos. Logo voltei ao reflexo estampado na janela. Uma curva fechada e o motorista faz com que o "sujeito cantor" rele o braço no meu braço. Minha mente me permitiu imaginar coisas mais absurdas, como inúmeras maneiras dele pedir meu contato nas redes sociais ou pedir meu telefone.

Não sei se passei muito tempo imaginando essas possibilidades de manter contato, pois logo eu já estava próximo do ponto onde sempre desço para casa. Levantei um pouco apressada e repeti a única palavra que ele disse para mim: "licença". Naturalmente, ele se levantou, eu agradeci e dessa vez recebi um sorriso espontâneo e aberto.

Espero encontrá-lo hoje novamente.

Malditos sejam esses amores que duram uma hora ou alguns minutos...


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1 Response to "Reflexo na Janela"

  1. La Joie de Vivre! says:
    26 de maio de 2015 às 08:46

    adorei o texto, vibrei muito com ele! essas viagens longas de ônibus (cá em Portugal dizemos autocarro eheh) podem ser muito chatas mesmo, mas se nos cruzamos com uma pessoa como essa... aí é diferente! eheh sou a nova seguidora <3 beijos

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